29.9.10

Dina

A Dina é mais ou menos da minha idade, um ou dois anos mais nova ou mais velha, não sei bem. A Dina teve meningite em pequenina, tem uma faltinha. Foi o que sempre ouvi dizer por lá, todas as vizinhas acenavam com a cabeça quando a Dina passava. Eu era amiga da Dina, fui sempre, desde pequenina. Só não me lembro da Dina ter a tal meningite, talvez fosse quando ainda era bebé. Foi a Dina que me contou que o pai era muito mau e que batia na mãe e nos irmãos e irmãs dela. Eram muitos filhos, ao todo talvez uns sete ou oito. Eu e a Dina brincávamos e ela contava-me estas coisas. Todos os filhos morriam de medo do pai, e a mãe também. A Dina cresceu, eu também e naturalmente afastamo-nos. Até que um dia ouvi a mãe dela dizer: a minha Dina arranjou moço, não sei o que vai ser. Claro, a Dina tem uma faltinha e a mãe, melhor do que ninguém sabe disso. A Dina casou-se a mãe disse: não sei se a minha Dina vai dar conta do recado. A Dina teve uma filha que por acaso é da idade do meu filho mais velho e andam juntos na escola desde o primeiro ano. A Dina deu conta do recado. A Dina trabalha numa fábrica, é casada e tem uma filha. É despachada, na boca da mãe: a minha Dina deu mulher de vida, nunca pensei, ela que teve meningite em pequenina. E eu acho que a Dina é feliz, é uma mulher realizada, satisfeita com a sua vida. Sempre que passa por mim a Dina sorri-me e pergunta-me se está tudo bem comigo. Gosto dela. Recentemente o pai da Dina morreu, velho e doente, amado por todos os filhos independentemente de ter sido mau e cruel com todos eles. A Dina veste luto pelo pai, e é sentido aquele luto. Vem-lhe do coração. Esqueceu todas as coças que levou, por amor.

27.9.10

Smoke free

Vou tentar explicar o que sinto ao fim de três semanas sem fumar. Há os dentes que "embranqueceram" um bocadinho e as gengivas que entretanto estão a voltar ao cor-de-rosa original em vez do acastanhado dos últimos anos, e o hálito de merda pela manhã melhorou significativament, já não é de merda, é só o mau hálito normal de quem está a acordar. Depois há uma certa sensação de liberdade porque deixei de pensar nos sítios onde vou condicionada se são espaços fumadores ou não fumadores. Deixei de ter a canseira de ter de ter sempre tabaco comigo e a preocupação de saber onde está o isqueiro. Já não me preocupo se aquele intervalozinho entre afazeres vai dar para fumar um cigarro. A minha sala de estar já não fede e já não há cinzeiros para despejar. Fisicamente ainda não sinto nada de mais, tirando uns ataques de tosse que quando fumava não tinha. Diz que são os pulmões a limpar. Diz que sim. Mas, meus amigos, continuo a ter a mesma vontade de fumar. Pois.

26.9.10

Novo mundo

Se muitas pessoas e acontecimentos nos valem apenas um comentário banal ou um acenar de cabeça inconsciente há outras que nos perturbam de uma forma que nos muda. Se muitas situações são complicadas e confusas há outras que se nos mostram claras como água e o caminho abre-se à nossa frente sem encruzilhadas ou desvios. O verão de 2010 ficará como o verão da mudança, ou melhor, da descoberta. Descobri em mim uma mulher que julgava não existir, descobri que essa mulher pode pouco contra ela própria e no entanto tem perfeita consciência do que faz e de como o faz, e mesmo vendo à sua frente o precipício, resolve dar o passo em frente. Percebi que, mesmo sabendo que o caminho não tinha saída, fui capaz de não travar, fui capaz de avançar, de ir até ao fim. Há agora todo um novo mundo dentro de mim, há toda uma nova percepção da realidade e tudo isto, grande e avassalador é completamente inútil. Nada se pode fazer com tudo isto e aceitei que ficará guardado numa gaveta onde te encerrei. Junto-te agora tudo o que fizeste acordar dentro de mim, junto-te agora tudo o que me fizeste sentir. Guarda nessa gaveta, fecha-a e esconde a chave até que tudo adormeça ou morra, até que as memórias bafientas e cobertas de pó sirvam apenas para serem lembradas, já sem lágrimas e só com sorrisos. Pode ser que um dia, como nos filmes, eu conte esta história e faça alguém sonhar.

23.9.10

Choque em cadeia

Os olhos viram um vulto e um carro que o cérebro não teve a certeza de identificar, mas achou que podia ser um determinado carro e o vulto o seu dono, e isto numa fracção de segundo, em andamento, na estrada. A seguir o cérebro envia instruções e o corpo recebe uma descarga de adrenalina, os braços e as pernas quase perdem a força, as tripas contraem-se e torcem-se e os dentes mordem o lábio inferior. Tudo isto mais ou menos em dois segundos. Restou um nico de frieza para permitir a condução num mínimo de segurança. Fiquei mal-disposta, tinha acabado de almoçar, e tudo isto por causa de um vulto que nem sei se era quem o meu cérebro achou que era, só porque conduzia um carro da mesma marca e da mesma cor. Estou mal-disposta principalmente por saber que não consigo controlar estas reacções que tenho àquele homem. Reajo involuntariamente àquele homem. O meu corpo reage, é incontrolável.

Rostos

Vi há dias uma das raparigas mais populares do meu tempo de liceu. Hoje vi outra. E há ainda outra que rejo frequentemente. Todas muito giras e boas na altura do liceu. Maquilhavam-se e usavam as roupas da moda. Tinham os rapazes todos de volta delas. Eram as maiores. A primeira namorava com um tipo que era lindíssimo mas completamente louco. Dava-lhe ordens e estalos na cara, nem sempre por esta ordem. Ela engravidou e casaram-se. poucos anos depois divorciaram-se porque segundo as más-línguas os estalos evoluíram para grandes cargas de porrada. Quando a vi no sábado passado ia com  filha, uma pré-adolescente, e ela, a mãe, falava nervosamente ao telemóvel. Nervosa, muito nervosa. A que vi hoje era uma miúda engraçada, alegre e gaiteira. Desconheço-lhe o percurso de vida, mas hoje passeava-se nos corredores do super mercado, gorda e feia, arrombada e desleixada, cara fechada e passos lentos. A terceira é caixa nesse mesmo super mercado. Tem a pele cheia de marcas de acne, lembro-me que desde muito nova se maquilhava, tinha quilos de base e pó no rosto diariamente. Era gira e boa, tinha estilo. Não sei se acabou o secundário, mas desde que este super mercado abriu já há uns bons anos que a vejo lá na caixa. A pele estragada e os dentes todos estuporados, não é antipática com os clientes porque não pode mas também não sorri. Vejo estas mulheres e penso que talvez a popularidade na escola e os rapazes todos babados lhes tenham subido à cabeça e espalharam-se ao comprido. Penso nestas mulheres e inevitavelmente penso em mim, que sempre fui uma rapariga roliça, mas alegre. Nunca tive os rapazes em meu redor, mas sempre me dei bem com eles, sempre tive bons amigos, mas eu nunca fui a gaja boa, era a gaja porreiraça. Os anos foram passando e a vida seguiu o seu curso, fui envelhecendo e tive filhos, mas hoje estou bem melhor do que estas três miúdas, gosto mais do meu corpo agora do que quando era adolescente. Mas o que realmente me entristece nestas mulheres é que lhes vejo a infelicidade e a amargura no rosto. As mulheres infelizes são feias, quer se arranjem quer não, podem tentar esconder com roupas caras e maquilhagens magníficas. Podem até ter traços finos, rostos dignos de esculturas gregas ou de telas renascentistas mas a amargura e a tristeza são implacáveis, reconheço-as no rosto de qualquer mulher.

21.9.10

Carne

Como uma lança cravada na carne arranquei-te de mim, a frio, sem hesitar. Como uma lança cravada na carne que ao sair rasga mais um pouco, dói mais um pouco, sangra mais um pouco, para a seguir sarar.

20.9.10

Adeus

Quando um homem te diz que é fácil apaixonar-se por ti, que és uma mulher de trato fácil, extremamente inteligente, bem disposta, que és lindíssima, que ainda por cima não és convencida, quando um homem te diz isto estando deitado na tua cama e principalmente sabendo que é a última vez, sentes-te tentada a acreditar.

19.9.10

Tão errado

Sabes que algo está muito errado contigo quando, já no carro e a caminho de casa, com um sorriso nos lábios e com aquela sensação tão boa que te faz inclinar a cabeça e roçar o rosto no ombro, com o corpo relaxado e mole, a pensar que o P. é uma maravilha e que mais uma vez não te desiludiu, e na rádio toca uma puta duma música e é como se levasses com um balde de água fria pelos cornos abaixo porque sentes que acabaste de trair alguém. Muito errado, mesmo muito errado.

17.9.10

Manda foto

Ri-me tanto que até me deu um ataque de tosse e depois de conseguir compor-me lá respondi que ia pensar porque foi o que me ocorreu responder ao pedido que me fizeram hoje, um pouco antes do almoço, para eu enviar uma foto minha. Nua. Este pedido, não é assim tão ridículo se tivermos em conta que veio de alguém que já me conhece no sentido bíblico há bastante tempo e com quem eu estava hoje, um pouco antes do almoço, a falar para marcar um encontro para amanhã. E porque é que eu tive um ataque de riso de ir às lágrimas e à tosse convulsa? Porque eu, no fundo no fundo, entendi esta merda como um elogio. Cigarros, dai-me cigarros! Depressa!

16.9.10

A doer

Tive sempre a convicção que quando as merdas são a sério, tem de ser a doer, senão não vale. Daí que, o que se sente tem de ser dito, tem de ser escutado. Mesmo que doa ao dizer, e que doa ainda mais depois de ser escutado. Não pode ser de outra maneira, senão fico com a sensação que não é real, e é, por isso rejeito reduzi-lo a uma mera impressão que com o passar do tempo se transforma numa ténue lembrança turva e sem importância, não seria justo. Não seria honesto.

15.9.10

Provas de fogo

Passei ontem à noite com distinção (e ajuda dos amigos porque a dada altura vacilei e pedi uma passa mas não me deram e eu não insisti) uma das provas de fogo para quem está a tentar deixar de fumar: um concerto. Ah pois é. Os Supertramp tocaram ontem no Pavilhão Rosa Mota no Porto. E eu fui. E não fumei. Batam palmas se fazem favor. E gostei muito do concerto e teria gostado muito mais se tivesse fumado um cigarrito, mas pronto, não se pode ter tudo. Quero ver lá para o dia 23 ou 24, como é que vai ser. Preparem os tambores. Vou ovular. Vai ser lindo.

13.9.10

Igual ao litro

Se eu abrisse uma certa gaveta que eu cá sei, e se abrisse um maço que eu cá sei e fumasse um cigarro, ou dois ou três, ninguém saberia. Estou em casa sozinha e seria igualzinho ao litro. Mas não abro e não fumo, porque assim posso dizer que não fumo há 7 dias sem mentir, e mais, com uma pontinha de orgulho. Só me apetece chorar, inexplicavelmente a falta de nicotina dá-me para a lamechice em vez de me dar para ter vontade de partir o focinho a toda a gente, mas, puta que me pariu, hoje não fumo.

11.9.10

Turbilhão



Clã - Sopro do coração

É fodido

É muito fodido quando percebes que o melhor sexo da tua vida não se vai repetir. É fodido quando percebes que aquilo do mover montanhas, do entrar em transe, do já nem saber de que terra és, de já não aguentares mais e o orgasmo vir acalmar o turbilhão em vez de ser o turbilhão não é um mito inventado pelos filmes, que a puta da fasquia não desce dali e não há nada a fazer. É fodido quando percebes que o gajo que te põe a arder com um olhar, que quase que te faz vir só com um sussurro ao ouvido e que te diz meu amor e tu por qualquer motivo incompreensível não te desfazes a rir, é fodido perceber que esse gajo, esse preciso gajo tu não podes ter. Eu já percebi e aceitei isto tudo há muito, mas só deixei de fumar agora, vai daí que as merdas que me irritam, neste momento irritam-me infinitamente mais.

10.9.10

Caminhos

Saio do escritório e entro no carro. Desço a rua e lá em baixo contorno a rotunda. Podia virar logo à direita e subir, depois virar à esquerda e entrar na circular que contorna a cidade e chegaria ao meu destino em 5 minutos. Mas contorno a rotunda e só saio na próxima e vou em direcção ao centro da cidade. O semáforo calha sempre em vermelho, sempre. Espero, gosto de ver as pessoas. Gosto do tempo que perco, não perco porque este tempo não é perdido, gosto de percorrer as ruas do centro, gosto de observar por entre o trânsito lento os avós que trazem os meninos pela mão, as mulheres em passo rápido com os sacos do super-mercado quase a rebentar. Delicio-me com as pessoas que correm para entrar nos autocarros, ansiosas por chegar a casa. Avanço lentamente e ouço a rua. O movimento das pessoas na rua, as compras rápidas antes do jantar, ou o café ou a cerveja descontraída na esplanada. No Inverno é parecido, há sempre gente na rua ao final do dia, há sempre mulheres e homens apressados e há sempre mulheres e homens descontraídos. Há idosos com crianças pela mão. E há trânsito. Às vezes há chuva também. Há, sobretudo vida, várias vidas, muitas vidas que se cruzam diariamente, incognitamente. Não dispenso esta passagem breve pela vida de outras pessoas. Podia contornar tudo isto, mas escolho não o fazer, escolho fazer com que todas estas pessoas que não conheço façam parte da minha vida.

9.9.10

A mim ninguém me cala

Apetece-me tanto fumar! Elas encolhem os ombros e não abrem a boca. Fumava um cigarro agora, ai... Elas entreolham-se e baixam os olhos. Posso dar um grito? Elas escancaram-se a rir. Merda! Ninguém diz nada? Então? Não sabemos o que te dizer, não sabemos se te custa mais se falarmos nisso ou se não dissermos nada. As minhas colegas todas de sala fumam, pois. E eu estou a tentar deixar de fumar. E ajuda-me falar nisso, ajuda-me dizer de vez em quando, quando tenho vontade de fumar, ajuda-me verbalizá-lo. Se, de vez em quando, eu mandar umas bocas, ai que eu fumava uma cigarrada, ai que me apetece tanto fumar, ai que nervos, ai que nojo, foda-se esta merda toda, puta de ideinha esta que me foi dar de deixar de fumar! Pronto, sinto-me melhor. Deixem-me falar!

Nada contra

Ontem fiz o eco-doppler, coincidência das coincidências, o sô dôtor que me fez o exame era o mesmo que me viu no hospital, tanto na urgência em Janeiro como na consulta de Junho. Lembrava-se de mim. Coitado, viu-se fodidinho para me aturar, teve de me explicar tudo, tudo mesmo, o que estava a fazer, o que tinha feito e o que não tinha feito. Como e porquê. Massacrei-o durante mais de uma hora. No fim, fiquei satisfeita, percebi tudo o que me faltava perceber apesar de não concordar com alguns procedimentos. O homem acabou o exame todo contente por ter conseguido limpar a imagem dele e a dizer-me que "até já gosto de si", mas percebeu a argolada e remendou: "Não é que antes não gostasse, percebeu, não percebeu? Não tenho nada contra si". Sosseguei-o: "Claro que percebi doutor, eu também não tenho nada contra si. Nem a favor"

8.9.10

Veredicto

Fiz o tal exame, hoje. O eco-doppler. A veia poplítea está bem. Há lá um pequeno vestígio da trombose na válvula, mas pouco, muito pouco.

Apetece-me tanto fumar. Tanto, mas tanto... Para me distrair ontem à noite fiz chá. Devo ter bebido perto de um litro de chá. Não me apetece chá, hoje. Coca-cola. Hoje é coca-cola.

Tenho de desfazer-me de todas as garrafas de bebidas alcoólicas, antes que a coisa vire...

7.9.10

Noventa

Como na sexta-feira passada já dormiram em casa do pai ontem à noite dormiram comigo, a regra é dormirem comigo só uma vez por semana e normalmente é à sexta-feira. Deitamo-nos como sempre, eu no meio e um de cada lado agarrando-me um braço cada um e uma perna a entrelaçar cada uma das minhas. Mas, o grande começou a queixar-se que tinha qualquer coisa a incomodá-lo numa unha do pé. Acendi a luz e verifiquei do que se tratava. Uma unha partida, nada de especial. Então levantei-me e fui buscar a tesourinha pequenina e agarrei-lhe no dedo para cortar o pedacinho da unha que estava levantado e arranhava o que fosse que tocasse. Acontece que ao agarrar o dedo, não sei como fiz, mas a articulação estalou, e estalou a confusão. Foi um ver se te avias, o grande soltou uma gargalhada quando o dedo estalou, o pequeno achou piada e toca a puxar os dedos dos pés ao grande a ver se estalavam. E o grande, claro, toca a puxar os dedos dos pés ao pequeno. Quanto mais os dedos estalavam mais eles se riam e quando dou conta já me estão os dois a tentar apanhar os dedos dos meus pés e instalou-se definitivamente a tourada em cima da minha cama. Não me aguentei, as gargalhadas eram contagiantes e quanto mais eu me ria menos força tinha para lhes fugir. Não escapou um dedinho, de ninguém, e cada dedo cada gargalhada. Eram trinta dedos naquela cama, eram três pessoas a rir, o que feitas as contas resultou em noventa gargalhadas em menos de cinco minutos. Já tive muitos presentes de aniversário, mas nenhum, nenhum como este.

6.9.10

Hoje

Faço 35 anos.
Deixo de fumar.

5.9.10

Amanhã

Chega a doer um bocadinho. Amanhã é o último dia.

4.9.10

A sangue frio.

Se um dia um dos meus filhos me disser, mãe, aquele homem fez-me isto, ou, aquele homem tocou-me aqui, ou, isso mesmo que ocorre a todas as mães e pais e que é tão medonho que se luta contra essa ideia com todas as forças do ser, se um dia um dos meus filhos me disser mãe, aquele homem, aquele homem, se um dia eu o apanhar, e esforçar-me-ei para o conseguir ainda que seja a última coisa que faça na puta da vida, se um dia eu o apanhar, aquele homem, morre às minhas mãos, às minhas unhas, aos meus dentes. Depois podem fazer um circo mediático à minha volta. Não me importo. Não verterei uma lágrima. Não proferirei uma palavra.

2.9.10

Salva-vidas

Porque projectamos nós nos outros, aquilo que gostaríamos que fossem ao invés de aceitarmos o que realmente são? Tendemos todos para isso, acho eu. Conhecemos as pessoas, até ao nível que nos é dado a conhecer e incluindo sempre o cunho que lhes imprimimos que nunca é isento, faz parte do ser humano, a nossa interpretação tem sempre e só a ver connosco, mas depois projectamos, invariavelmente todo o potencial que a pessoa tem, ou que pensamos que tem. Muitas vezes é esse potencial que é o mais atractivo, diminuímos o real e focamo-nos no potencial. Depois, quando as pessoas não correspondem ao potencial que lhes atribuímos inventamos todos os motivos e mais alguns para que tal não suceda. Há uma pessoa que me acha o máximo. Acha-me linda, maravilhosa e um espectáculo de pessoa. Tudo filme daquela cabeça. Fico chateada, porque não só não me conhece bem como também tem as ideias um bocado baralhadas por conjunturas negativas e então, eu pareço-lhe um raio de sol no meio da escuridão, pareço-lhe o salva-vidas que lhe vai deitar a mão porque se sente a afundar. Tudo filme daquela cabeça. Aceito que me ache bonita, há gostos para tudo e gostos não se discutem. Não aceito que me venere, que me eleve a um plano que só naquela cabeça existe, e muito menos que me tome por salva-vidas. Tomara eu manter a minha vida à tona.

Needs

"I think he always loved me, in his own way, spending no time with me, showing me no affection"

"Why did you stay?"

"I didn't need him to feel about me the same way I felt about him"

1.9.10

As minhas dores

Consegui recuperar alguns hábitos que me fizeram muita falta durante anos. Encontrando-me com tempo para dedicar a mim própria recomecei a fazer aquelas coisas que me dão imenso prazer e das quais me tinha simplesmente esquecido. Recomecei a frequentar as sessões do Cineclube ainda que quinzenalmente, recomecei a deitar o olho aos concertos e às peças de teatro, recomecei a comprar livros. Durante cerca de dez anos li apenas um livro por ano, a minha avidez pela leitura morreu. Li desalmadamente pela adolescência fora, encontrava-me dentro de livros e vivia neles a maior parte do meu tempo, e custava-me imenso deles sair. Li livros que eram para a minha idade e que não eram para a minha idade. Depois casei-me e continuei a ler, tinha muito tempo para mim com um marido que viajava a maior parte do tempo. Depois tive um filho e o tempo para ler fez-se pouco. O tempo para ir ao cinema, concertos e todo o tipo de espectáculos fez-se nenhum. Depois tive outro filho e os dois eram todo o meu tempo, toda a minha vida. À noite, aquele tempo de silêncio de nada rendia, vencida pelo cansaço a leitura era simplesmente impossível, tentava mas de nada servia. Levantá-los, vesti-los, pequeno-almoço, escola ou infantário, trabalho, banho, deitá-los, sozinha porque no meu caso durante a semana não havia com quem repartir as tarefas, tudo isto fazia com que tudo o que lesse fosse inútil. Desisti de ler simplesmente, não valia a pena, não retinha absolutamente nada. As férias grandes, sim, um livro cuidadosamente escolhido, da lista que mentalmente ia fazendo, os que queria ler. Sentia-me reduzida a quase nada por só ser capaz de ler um livro por ano. Sou uma grande parva, não sei organizar-me, não faço a gestão do tempo como devia fazer, deveria conseguir ler mais, não leio mais por exclusiva responsabilidade minha. Nunca culpei fosse o que fosse ou fosse quem fosse pela minha falta de disciplina. Hoje, com tempo para dedicar a todas as coisas que gosto de fazer, com oportunidade de investir no meu prazer pessoal, os livros são o que mais me custa. Não preciso de sair de casa, não preciso de fazer rigorosamente nada, basta pegar neles e abri-los. Não percebo porque me custa tanto. Não percebo porque me doem tanto os livros.