31.8.12

Podia ter sido no Texas

Ninguém. Estranho pensou ele enquanto avançava a passo lento mas largo pela calçada poeirenta. A avenida tinha árvores grossas de cada lado e o passo era cada vez menos lento, a descer, gostava da sensação do peso do seu próprio corpo o empurrar para baixo. Havia uma espécie de armazém comprido, abandonado e com o que antes teriam sido as entradas completamente tapadas com betão para evitar vandalismos lá para dentro. Mais abaixo uma decadente remanescência de um salão de Bingo. Desembocou numa grande praça, e olhando para a direita não conseguia ver o fim de um jardim demasiado bem arranjado. Isto é novo, pareceu-lhe, pelo cheiro a terra revolvida recentemente. Tinha acabado de chegar à cidade e gostou da envolvência apesar de não se ver vivalma.

Estava vento, havia folhas pelo ar e insetos a esbarrarem-se-lhe nas trombas, mas ei, o que era aquilo comparado com as merdas por que já tinha passado. Cheirou-lhe a comida e sentiu o estômago às voltas, lembrou-se que já não comia nada desde a manhã do dia anterior, e tendo em conta a quantidade de whiskey ingerido naquela noite já nem estômago devia ter, estaria tudo dissolvido. E pelo fedor dos peidos largados durante a viagem, não tinha dúvidas de que estava todo podre. Ao menos a pinta de rufia que fazia questão em manter não cortando a barba mais do que uma vez por semana ainda lhe ia valendo algumas quecas com gajas bastante aceitáveis e com uma regularidade que muitos dariam o cu para conseguir.

Ouviu as batidas dum sino próximo, ergueu a cabeça e reparou numa igreja do lado esquerdo e num edifício cheio de janelas todas iguais do lado direito. Na esquina mesmo ali um café com cadeiras em madeira cobertas com vestígios de verniz, que terá sido luxuosamente brilhante um dia. Dois empregados encostados ao balcão, calças pretas lustrosas de tanto uso e camisas que já nem se lembravam de um dia terem sido brancas, ar nitidamente entediado devido à ausência da clientela. Talvez fosse da hora tardia, mas caralho, um café deserto a esta hora da tarde? Não faz sentido. Algo de estranho se passa nesta cidade. Resolveu não parar e logo adiante percebeu de onde saía o cheiro a comida, percebia agora que lhe chegava ao nariz o aroma a bife. Calhava bem um belo bife, podia ser que comesse o resto do álcool que ainda sentia a balançar quando se virava mais bruscamente para confirmar se era seguido. Até o chafariz antigo, ao estilo fruteira de louça de três andares, lhe parecia preguiçoso, tudo ali estava parado, e entranhava-se-lhe nos ossos a sensação que algo de errado se passava. Mesmo desconfiado do ambiente demasiado calmo sentou-se na cadeira da esplanada e pousou a carteira na mesa. Tirou os óculos escuros e pousou-os também, encostou-se na cadeira, deslizou o cu para a frente e cruzou as pernas. Finalmente ia poder descontrair, comer uma refeição decente e pensar no próximo passo.

Estava cansado de fugir e esta parecia uma terrinha pequena o suficiente para ninguém se lembrar de o procurar ali e grande o suficiente para poder misturar-se com os nativos sem causar grande estrilho. Não compreendeu bem o significado das enormes letras brancas espetadas naquele pedaço inusitado de muralha entre duas casas, mas achou que era qualquer coisa relacionada com algum qualquer feito histórico. Decidiu que iria perguntar ao tipo que vinha encontrar-se com ele, devia estar quase a chegar, faltavam cinco minutos para as seis da tarde. O Crispim falou-lhe de um tipo que facilmente lhe arranjaria onde ficar e que o orientaria na cidade, agora que tinha chegado não lhe parecia haver necessidade de cicerone, mas já havia sido feito o contacto, e não iria desmarcar. Sentiu as costas a doer e descruzou as pernas, voltando a cruza-las mas invertendo-as e sentiu o odor do seu próprio suor misturado com o perfume da Susana, hum… seria Susana? Não tinha a certeza do nome mas a gaja colou-se-lhe na noite anterior. Tinha-a montado durante mais de uma hora e a gaja lembrava-lhe vagamente a colombiana mamalhuda que conheceu em Sevilha no ano anterior quando lá teve um trabalho daqueles fodidos, mas compensou a massa que lhe pagaram, e afinal limpar o sebo aos maus não lhe tirava o sono e não.

Lá estava o tipo, de lenço atado na cabeça, e de aspeto a raiar o albino, os olhos eram quase transparentes. Era feio, mas abriu-lhe um sorriso quando o viu e lá apareceram as falhas na dentadura. Heroína, pá, é fodido. Estrangeiro? Sim, senta-te pá. Pede de beber, o que queres?, Um fino, e emborcou metade de golada assim que chegou à mesa. E então o que vens cá fazer? Ando a ver se desapareço, tás a ver? Preciso de desaparecer por uns tempos e achei boa ideia vir para cá. Não há problema, man. Aqui fazes a tua vidinha e ninguém repara em ti, desde que não te metas em estrondos. Mas ó pá, em que caralho é que te meteste para teres de desaparecer? Já estás a querer saber demais, mete-te na tua vida se não queres merda para o teu lado. O Crispim garantiu que tu eras boa onda, mas estou a ver que és metido a besta. Não sei se não desando já. E enquanto falava num tom de voz sereno mas firme, não sentindo que fosse necessário mais do que isso para meter o totó que tinha à frente na linha, teve a impressão de que algo brilhava na torre da igreja que estava agora de frente. Fixou o olhar nos sinos mas não percebeu movimento algum. De repente lembrou-se que ainda lá estava o tipo, que entretanto acabava a cerveja e tinha algumas perguntas para lhe fazer. Precisava de alugar um carro e de comprar alguma roupa barata e discreta. Também queria umas gramas de haxixe pois precisava mesmo de relaxar e dormir e sentia-se mal com Valiums e merdas dessas que só fazem mal à saúde de um gajo.

Vislumbrou um brilho outra vez e ouviu um estalido seco e curto e na testa do tipo abriu-se um orifício de 1cm de diâmetro. Só teve tempo de olhar para ele e olhar de novo para a torre e percebeu a pintinha vermelha no peito e estacou. Viu-a subir até deixar de conseguir vê-la enquanto ouvia alguém chamar por alguém para virem ver o Mané que tinha levado um tiro nos cornos. Olhou fixamente para a torre da igreja e soube que era o fim. Dois segundos que pareceram duas horas e a gota de suor que lhe escorreu muito lentamente pela fonte pareceu-lhe o único movimento no universo inteiro. Sabia que a pinta vermelha estava parada na sua testa, mas foda-se, se era para acabar com ele, porque caralho é que ainda estava vivo? Levantou-se da cadeira e andou, mesmo quando os homens que estavam dentro do bar saiam aos berros e agarravam o Mané. Nem deram por ele, que puta de sorte. Dirigiu-se para a esquerda e dobrou a esquina mesmo em frente ao café das cadeiras de madeira de verniz descascado e viu outra praça. Uma placa de um hotel, calha mesmo bem, fico já aqui, não queria um hotel deste calibre mas que se foda, tem de ser, tenho de sair de circulação imediatamente.

Entrou e pediu um quarto single, deu nome falso e apresentou o cartão, dos cinco que tinha dentro da carteira retirou o cartão com o nome dado à rececionista. Quando chegou ao quarto abeirou-se da janela e percebeu que estava mesmo por cima do acontecimento. O Mané deitado na pedra e o sangue a crescer à volta da sua cabeça. Os homens de volta dele, um deles agarrado ao telemóvel provavelmente a chamar por ajuda. Desviou-se e voltou a concentrar-se na torre e nos sinos. O tiro veio dali, só podia ter vindo dali. Despiu-se e entrou no duche. Ouviu a sirene da ambulância enquanto sentia a água quente a descer-lhe pelo corpo e ainda conseguiu perceber o tumulto das pessoas que começavam a juntar-se à volta do morto. Não compreendeu de onde aparecia aquela gente toda quando há poucos minutos a praça estava deserta, mas não foi assunto que o preocupasse mais do que dez segundos. Acendeu um cigarro e esticou-se na cama só com a toalha à volta da cintura. Tentou puxar a fita atrás, desde essa manhã, quando entrou no comboio em Santa Apolónia. Esteve sempre atento, ninguém o seguira, tinha a certeza.

Em Campanhã não percebeu nenhum movimento suspeito enquanto fingia que lia o jornal à espera da ligação para cá. Não podia ser. Ficou a matutar no percurso todo, recuou até à noite anterior, no Bairro Alto e nada se destacou. É verdade que no aeroporto houve uma mulher que o fixou quando esperava pela bagagem, mas depois sorriu-lhe e ele convenceu-se que era o seu charme de bad ass a funcionar.  Teria sido a puta da Susana a bufa-lo, ou lá como é que ela se chamava, mas a gaja era burra que nem um sino e só estava interessada em beber à borla e foder, e que bem que se fodeu. Está a escapar-me alguma coisa, pensou, e nem tive tempo de comer o bife, que merda, foda-se, estou cheio de fome. Mas não posso sair agora, vou pedir room service, espero que tenham room service neste hotel de cidade pequena. Pediu. Havia. Comeu. E depois de mais um cigarro adormeceu.
Maria do Carmo trabalhava naquele hotel desde que abriu e estava convencida que já tinha visto de tudo quando ia arrumar os quartos, mas naquela manhã, afinal, ainda houve espaço para espanto. Quando abriu a porta estava um homem esticado na cama, descoberto, todo nu. O seu primeiro instinto foi recuar, mas como de burra não tinha nada, Maria do Carmo percebeu que ali havia coisa, porque o homem não se mexeu quando ela entrou. Aproximou-se e viu do outro lado da cama o sangue que lhe escorrera do buraco que tinha por cima da orelha direita. Sentiu uma leve brisa e olhou para a janela para ver um dos vidros quebrados. Ao olhar para o chão, no meio dos pedaços de vidro viu uma beata de um cigarro. O coração quase que lhe saltava pela boca, mas ainda assim agarrou no telefone e fez o que tinha a fazer.
Veio gente, e mais gente, e bombeiros, e polícia e fizeram-lhe as perguntas todas que havia para fazer.  E aquilo durou o dia todo e Maria do Carmo estava exausta e só queria ir para casa para perto do marido e dos filhos, coitadinhos. Quando finalmente conseguiu chegar a casa, respirou fundo aliviada. Preparou o jantar, deu banho às crianças e deitou-as. Depois do marido adormecer no sofá, veio cá fora, à varanda, estava calor. E olhando para a montanha em frente, tirou o telemóvel do bolso do avental e marcou um número. Está lá? Está lá? disse, sem levantar o tom de voz, não fosse o marido acordar, e continuou, sim, confirmo, está feito, foi durante a noite.

30.8.12

Podia ter sido em Paris

Madalena acordou sobressaltada, o coração batia descompassadamente e tinha aquela sensação de ter estado a cair num poço, aquela sensação que cessa ao acordar mas que deixa uma dormência desconfortável que impede os movimentos do corpo nos segundos imediatos. Ficou imóvel portanto, e respirou fundo. Não conseguia lembrar-se do sonho, mas sabia que não fora nada de bom. Olhou para o relógio e sossegou pois ainda faltavam vinte minutos para a hora que na noite anterior tinha decidido marcar no despertador. Levantou-se e abriu a portada da janela e deixou o Sol inundar-lhe o quarto. Sorriu. Ia ser um dia bom. Arrepiou-se e num movimento quase instintivo cruzou os braços agarrando os antebraços com as mãos ainda um pouco suadas, o mau sonho devia ter sido mesmo mau.

A manhã estava soalheira, apeteceu-lhe abrir a janela e cheirar o dia. Assim fez mas não demorou muito tempo a fecha-la pois sentiu a brisa gelada e arrepiou-se de novo, então vestiu o casaco de cachemira que de tão velho já lhe tinha decorado todas as curvas do corpo e antes de se dirigir à cozinha abriu a torneira da banheira. Depois, ligou a máquina do café e bebeu um copo de água. Ansiava que o dia começasse, iria vê-lo de novo, e de cada vez que pensava nisso o estômago dava uma reviravolta. Fez o café e bebeu-o mas comer o que quer que fosse era simplesmente impensável.

Olhou para o roupeiro aberto e sabia exatamente que vestido tirar, tinha pensado nisso no dia anterior durante a tarde toda. Hesitou entre o vestido verde-escuro que tinha comprado no Natal e o preto, aquele preto que só usava em ocasiões mesmo especiais. Especiais para ela, não em festas. Usava-o apenas quando queria causar um determinado impacto em alguém, era um vestido que podia usar tanto de dia ou de noite pois era neutro, só fazia a diferença nos sapatos ou no casaco. Aquele vestido era discreto mas assentava-lhe como uma luva. Aprendera a usar o corpo como uma arma havia muitos anos. Não como uma metralhadora barulhenta e disparatada, antes como um revólver com silenciador, daqueles que se encosta às costelas e surte o efeito desejado sem ninguém para além do alvo se aperceber. E Madalena usava o seu corpo de forma discreta mas com eficácia total, jamais falhara. Foi com esta certeza que se decidiu pelo vestido preto, e retirava-o agora do roupeiro com o cuidado que ele lhe merecia. Estendeu-o sobre a cama e de seguida tirou os sapatos de verniz preto e contemplou a indumentária, satisfeita, prevendo o resultado e por dentro tremeu.

Quando entrou na banheira e sentiu a água quente envolver-lhe o corpo imaginou-se nos braços do homem que tanto a perturbava. Deixou cair o corpo até as nádegas tocarem no fundo da banheira e sentiu o vapor da água aquecer-lhe o rosto enquanto inalava o aroma que pairava no ar, cheirava a tangerina, ácido e doce ao mesmo tempo, “combina tão bem comigo”, pensou. Lavou o corpo lentamente, quase que se acariciava e talvez fosse isso mesmo que pensaria se alguém a visse de longe mergulhada na banheira. Madalena não conseguia parar de pensar no encontro que ia ter, era mais forte do que ela, e tudo o que fazia e sentia estava relacionado com esse momento. As suas mãos percorrendo o corpo macio e quente eram como veludo, e a sua pele reagia a cada segundo.

Lavou o cabelo e saiu, secou-se e permitiu-se exagerar no creme que aplicou no corpo. Adorava a sensação do creme hidratante no corpo, as axilas, os cotovelos, os joelhos, o pescoço e o peito, a barriga e as virilhas, as coxas e as nádegas, não descurou nenhuma parte. Tinha um corpo que correspondia à sua idade, não era musculada nem tampouco flácida. Era um corpo que lhe agradava e que lhe servia. Escovou os dentes, secou o cabelo, maquilhou-se e foi nua até ao armário de cuja gaveta tirou a roupa interior. Da gaveta abaixo dessa pegou num par de meias, calçou-as com cuidado e prendeu-as às ligas. Sabia que apesar da temperatura ainda um pouco fresca lá fora não iria sentir frio, estava demasiado agitada para ter frio. Calçou os sapatos, pôs o vestido e por cima o casaco de feltro, abotoou-o e apertou o cinto. Faltavam apenas as gotas do seu perfume favorito e estava pronta. Pegou na bolsa, verificou que continha a carteira e a chave de casa e saiu.

O elevador cheirava mal. Algum dos vizinhos trouxe um saco de lixo da véspera e não foi há muito tempo, sentiu nojo. Ainda bem que morava no segundo andar e não no oitavo senão era muito provável que se lhe assomasse um vómito. Ainda assim susteve a respiração até a porta se abrir, mas antes ainda teve tempo de confirmar como estava no espelho do elevador.

Tempo morno, Madalena apostaria que não menos de vinte graus. Virou à esquerda e caminhou a ritmo certo mas devagar. Havia gente na rua, famílias com crianças e casais de velhos a passear. Eram onze e meia da manhã e também havia quem fosse tomar o pequeno-almoço, num dos cafés e pastelarias da avenida. Do outro lado da rua as pessoas entravam e saiam do centro comercial, o primeiro que fizeram na cidade, devia ter quase trinta anos. Ainda estava aberto, resistiam algumas lojas e tanto quanto sabia, uma pastelaria muito conhecida. O certo era que as lojas com montras viradas para a rua estavam todas ocupadas, o tipo de negócio tinha variado ao longo dos anos, mas havia negócio.

Não tardou a passar em frente ao hotel, e reparou no autocarro daqueles pequeninos, estacionado em frente, era alemão. Mais um grupo de turistas a visitar a cidade, era o tempo deles começarem a aparecer. Mal a temperatura subia com a chegada da Primavera, os turistas chegavam, ou em grupos metidos dentro de autocarros ou só casais a passeio ou famílias com crianças pequenas em miniférias. Sendo uma cidade pequena, tornava-se bastante atraente para casais com crianças pois podiam passear-se à vontade sem ficarem exaustos, a volta é pequena e não chateia se uma das crianças tiver de ser levada ao colo.

“Crianças” pensava Madalena, como gostaria de as ter, sonhava com isso desde nova, mas acreditava que o contexto tradicional era o mais indicado para ter filhos, com mãe, pai e de preferência também avós por perto. E ela, uma mulher sozinha, não considerava que tivesse condições para oferecer uma vida a uma criança. Talvez agora, que encontrou um homem que lhe mexe com as entranhas, talvez agora consiga vislumbrar uma centelha de possibilidade. E esqueceu-se do hotel e dos turistas e das crianças para voltar a concentrar-se no caminho que a levava até junto dele, quase que lhe sentia o cheiro, da última vez tinha ficado mesmo ao lado dele, e sentiu-lhe o perfume que lhe ficou gravado no cérebro e regressava de cada vez que pensava nisso. Acelerou o passo e nem reparou no grupo de rapazes sentados no café do outro lado da rua que já a miravam desde que deram com os olhos nela e a seguiram até que dobrou a esquina já ao pé da igreja. Subiu a avenida do lado esquerdo ao jardim.

Adorava aquele jardim, que dependendo da época do ano era presenteado com flores novas, plantadas uma a uma por jardineiros carinhosos. Na quaresma, pintavam-no de amores-perfeitos roxos a condizer com as bandeiras que ladeavam os arbustos que faziam o contorno do jardim. Os saltos dos sapatos balançavam na calçada mas estava treinada para andar sobre qualquer tipo de piso mesmo com stilettos, não fosse ela a elegância em pessoa, parecia que deslizava sobre o chão e quase que não se lhe ouviam os passos, se não fosse uma mulher tão sofisticada quase que se poderia dizer que fazia de propósito para chegar sorrateira e surpreender, mas não, era-lhe natural, não fazia esforço algum.

Atravessou a rua e virou à direita para contornar a esquina à esquerda passando mesmo junto da esplanada repleta de ociosos que aproveitavam os raios de Sol primaveris. Notou que a estação da Via Sacra pegada ao muro do museu estava aberta e não resistiu a espreitar, atravessou de novo a rua para passar mais perto das imagens que a fascinavam. Eram velhas e desbotadas mas eram também tão expressivas que a emocionavam, e não conseguia fugir-lhes de cada vez que passava por uma das várias estações que havia espalhadas pela parte velha da cidade. Imaginava as mulheres que cuidavam delas, despachadas e trabalhadoras de mãos calejadas, talvez se revezassem no asseio das jarras, pois tinham sempre flores frescas, achava aquelas estações da Via Sacra maravilhosas.

Passou pelo museu e voltou a acelerar o passo, faltava pouco e o coração batia mais forte, cada vez mais forte. Teve medo das pernas, podiam falhar-lhe tal era a excitação que sentia. Viu a esplanada cheia, e estava espalhado no ar o cheiro a café e a croissants mornos, havia jornais e revistas nas mãos e nos colos dos clientes e rapazes a jogar à bola, eram normal ao Domingo de manhã naquela praça haver aquela agitação que curiosamente a acalmava. Respirou fundo e sentiu uma vertigem subir-lhe pelas pernas e pelas entranhas e entrou.

Viu-o sentado no sítio do costume, e não estava ninguém sentado ao lado dele. “É a minha oportunidade” disse-se, avançou e sentou-se, reconhecendo o perfume, toda ela tremeu e garantia que todas as pessoas ali notaram a sua perturbação mas esforçou-se por manter a postura. Ele olhou-a e sorriu-lhe, ela retribuiu o sorriso mas ele provocava-lhe uma emoção que não compreendia completamente pois a última vez que a sentira era ainda adolescente, virgem e inocente, e que a fez virar-se para a frente quase automaticamente, como que embaraçada. Arrependeu-se imediatamente de não ter olhado de frente para ele nem que fosse por mas dois ou três segundos, talvez ele lhe tivesse dirigido a palavra, talvez lhe tivesse sussurrado um “bom dia”. Ouviu a música e saiu da dormência em que entrara no segundo em que o viu. Benzeu-se, e começou a missa.

29.8.12

Sono

Como faço todas as noites, antes de me deitar vou buscar o rapaz pequeno e levanto-o para o levar à casa de banho. Já não o levo ao colo que ele já ultrapassou há muito o meu limite máximo de levantamento de peso, mas basta orienta-lo e ele vai pelo pé dele, de olhos fechados e faz o chichi. Ontem, deixei-o à porta da casa de banho e fui-me despir. Quando lá cheguei estava de olhos fechados, muito direito a fazer chichi para dentro da banheira.