4.8.09

Escravidão

A minha mãe passa a vida a arrumar. Está sempre a mexer, sempre a por alguma coisa no sítio, sempre a abrir ou fechar gavetas ou a limpar coisas. Ela não pára, é impressionante, tem uma energia que francamente não sei de onde lhe vem. Admiro-a imenso por isso (e por outras coisas bem mais importantes). Pois está claro que eu fui muito bem educada nas lides domésticas. Demais até, durante toda a minha adolescência achei que estava a ser castigada por qualquer acto hediondo que tinha cometido sem me aperceber, tal foi o nível de colaboração em todas as tarefas domésticas que me foi sempre exigido. Sou portanto uma dona de casa perfeitamente qualificada. Certificada pela minha mãe nas lides da casa e certificada pelo meu pai nas lides culinárias (sim, sempre foi o meu pai o cozinheiro, e de truz!) Acontece que aqui a moça, tão bem preparada que estava para enfrentar todos os desafios inerentes à gestão de uma casa (e família, porque não?) quando se casa, recebe de "presente" uma empregada, ou mulher a dias porque só estava 2 dias por semana (começou por 1 mas depois passou a 2). E pronto, tantos aninhos a trabalhar, a preparar-me para a vida para depois não ter que fazer quase nada. "Oh que chatice..." Pois, pois... Esta foi precisamente a minha recompensa. Os cinemas com as amigas que falhei, os cafés que não tomei, os passeios que não dei, etc... finalmente recompensados! É certo que tive de ensinar à senhora (que podia ser minha mãe), do alto dos meus vinte e poucos anos, como se executavam certas tarefas de forma mais eficiente do que ela tinha por hábito fazer (o saber não ocupa lugar, dizia a minha mãe). E durante anos vivi assim, com mulher a dias 2 vezes por semana. Um dia para a limpeza geral do espaço e outro dia para passar a ferro toda a roupa entretanto lavada e seca. Um espectáculo! E moi, (podre, na boca do meu pai) além de cozinhar (mas isso sempre foi um prazer, nunca encarei a cozinha como uma tarefa), só fazia o estritamente necessário no dia a dia. O que era muito pouco. Vida boa, portanto. Agora, a mulher a dias só vem uma vez por semana (não preciso nem quero mais) o que significa que sou eu que passo a ferro. Não me importo, prefiro do que limpar, que é o que ela faz quando vem. Contudo, tocam-me também outras coisas. E aqui, não é bem que me toquem. Assim parece que as faço contrariada, e não faço. Habituada que estava ao bem bom, poderia até custar-me entrar no ritmo da manutenção básica da organização da casa, mas não. Limpo o que entretanto se sujou (numa semana muita coisa se suja), arrumo roupas, brinquedos, papéis. Faço camas, mudo lençóis e mudo também coisas de sítio, só para variar. Não me custa nada, e no fim tenho uma sensação de satisfação, de dever cumprido. Talvez sinta a casa como "mais minha" agora e ela me desperte mais atenção. Trabalho muito mais, é certo, mas é com gosto. Só não sou como a minha mãe, que é escrava da casa. Eu não: a casa é que é minha escrava, ela é minha e não o inverso. Eu arrumo e limpo, mas gosto de chegar a casa e sentir que vive cá alguém. Gosto de ver as almofadas do sofá amassadas, gosto de sentir o cheiro da lareira no inverno, gosto de ver os brinquedos na sala, gosto de ver os dvd's em cima da mesa, sentir que há vida cá dentro. Detesto aquelas casas que parecem montras de lojas ou exposições. Tudo impecável, nem um grão de pó, nem um fio fora do sítio, nem uma ruga no sofá. Dá-me a sensação que ali ninguém disfruta do conforto, que ali ninguém relaxa, que ali ninguém vive.

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